O reencontro

Na quinta-feira passada estive em Havana mesmo sem ter saído de Madri. Graças à guitarra de Boris Larramendi dei um pulinho na Ilha. Um breve – mas intenso – regresso por meio de acordes e boa música. Num lugar da capital espanhola um grupo de amigos se encontrou alguns formados pela Faculdade de Artes e Letras, como também antigos espectadores de cada evento musical que ocorreu em Cuba nos anos noventa. Senti-me em casa, pois exatamente na sala do nosso apartamento tivemos uma daquelas reuniões das quais tínhamos recordado na última noite. Evocamos nossa infusão de “caña santa” e aquela pitada de açúcar com que recuperávamos as energias depois de subir com as bicicletas pelas escadas por 14 andares. Porém, sobretudo, rememoramos as boas canções que ali eram escutadas, o espaço de liberdade que conseguíamos criar por algumas horas ao menos.

Além dos estribilhos e do arroz com feijão desfrutei especialmente do reencontro com estes compatriotas. Muitos deles dedicam-se, contudo, a abrir caminho numa Espanha estremecida pela crise econômica e pelos questionamentos políticos. Alguns desempregados, outros ilegais, vários com filhos nascidos aqui que não conhecem o país dos seus pais; todos incertos sobre o que ocorre em Cuba. Boris cantou até ficar rouco, as palmas das mãos ficavam roxas de acompanhá-lo com aplausos e – depois da meia noite – o humor surgiu, as piadas nos uniram.

Numa parede uma televisão mostrava imagens gravadas nas ruas de Havana. O malecón e a esquina de 23 com L ficavam como fundo audiovisual que acompanhava nossa guaracha* improvisada ao redor das mesas. Num momento percebi que aquela gravação na tela era de uma câmera de segurança policial. De modo que ali estava aquele material de vigilância filtrado e convertido em mero vídeo de entretenimento num espaço recreativo. A banalização do olho oficial, o controle convertido em informe frívolo da cotidianidade. Porém nem sequer isto nos distraiu do mais importante que estava ocorrendo naquela sala: a confluência. Estávamos encontrando o ponto comum depois de uma longa travessia e de uma separação prolongada. Éramos mais livres do que em qualquer reunião em Havana e não obstante continuávamos sendo o fruto de todas aquelas reuniões em Havana. Bendito passado que nos esperou nesta manhã.

* Guaracha é um gênero de música popular cubana de tempo rápido com letras. O mundo tem usado esta interpretação ao menos desde o século 18 até inícios do século 19. Guarachas eram tocadas e cantadas em teatros musicados e em salões populares. Elas se tornaram parte integral do teatro cômico Bufo na metade do século 19. Durante o final do século 19 e inícios do século 20 a guaracha foi a música favorita nos bordéis de Havana. A guaracha sobrevive hoje em dia nos repertórios de algumas músicas narrativas, conjuntos e Big bands no estilo cubano.

Tradução e administração do blog em língua portuguesa por Humberto Sisley de Souza Neto

Lima e a poeira

El cielo de Lima "color panza de burro"

Damos um rosto para cada cidade, uma personalidade para cada lugar. Camagüey me faz imaginar uma senhora sóbria e de boa linhagem. Frankfurt exibe o cabelo punk e uma gravata que brinca, Praga porta uns olhos azuis e o sorriso assimétrico daquele jovem que cruzou – por apenas um segundo – o meu caminho. Por seu lado Lima tem um rosto indescritível, porém coberto de poeira. O pó de Lima rodeia e pousa em torno de tudo. Sobrevoa as escarpas que abruptamente se abrem até um mar que parece muito frio para os caribenhos e muito agitado. Partículas diminutas de terra e areia que  grudam no corpo, a comida e a vida. Pó sobre as frutas da selva, sobre o ceviche recém servido. Pó enfiado no “pisco sour” que deixa o paladar com desejos de mais e também com desejos de nunca mais. Uma capa dourada, irreal que gruda nos pára-brisas dos automóveis e no vendedor de jornais que desafia a luz vermelha do sinal para vender sua mercadoria antes que anoiteça. O pó em que todos terminarão depois do dia final, porém que Lima nos adianta em vida.

Lima me pareceu uma garota de pele cobreada. Reservada, com algo deste mutismo misterioso dos que vivem na serra. Além disso, tem mãos que aliviam. Pois em Lima recuperei a voz e não é uma metáfora. Cheguei vencida por mais de cinqüenta dias de viagem intensa, afônica e com febre. Fui recuperada, vestida por meus amigos e com a energia recobrada por ver uma cidade que já não cabe em si mesma. Mergulhei os pés no pacífico pela primeira vez, subi nas colinas da vila de El Salvador para ver a gente conquistando terreno na aridez do solo e a pobreza. Também estive no centro histórico, com suas Igrejas, suas ofertas para turistas e suas procissões religiosas. Porque Lima é um sem fim de cidades, algumas delas caprichosamente superpostas sobre as outras. É como uma jovem cujo corpo cresceu muito e suas próprias roupas já não servem. Daí os engarrafamentos no transporte e tantos guindastes erguendo edifícios por todos os lados. Esta cidade tem um rosto formado de pressa, um olho aqui, uma boca acolá, uma frente tirada de outro lugar qualquer; é mestiça, chola, suíça, chilena e espanhola… É muito Lima.

Tradução e administração do blog em língua portuguesa por Humberto Sisley de Souza Neto

Venezuela: a esperança do por enquanto

venezuelahumo

O avião havia tocado o chão no Panamá e do outro lado da janela via-se um sol inclemente caindo sobre o pavimento. Percorri os salões do aeroporto atrás de um banho e também de um lugar onde esperar até à hora do meu próximo vôo. Alguns jovens que esperavam no salão principal me fizeram sinais e começaram a gritar meu nome. Eram venezuelanos Estavam ali, da mesma forma que eu, em trânsito para outro destino. Assim foi que conversamos em meio às pessoas e das maletas que iam e vinham, enquanto os alto-falantes anunciavam as saídas e as chegadas. Disseram-me que liam meu blog e compreendiam muito bem o que estávamos vivendo na Ilha. Num momento pedi uma foto com eles. Responderam com cara grande e a súplica de que, ”por favor  não a subas para o Facebook nem para o Twitter porque teremos problemas no nosso país”. Fiquei pasma. Imediatamente os venezuelanos me recordaram tremendamente os cubanos: temerosos, falando num sussurro, escondendo tudo aquilo que pudesse comprometê-los frente ao poder.

Aquele encontro me deixou refletindo sobre o tema do controle ideológico, a vigilância e a intromissão do estado em cada detalhe da vida cotidiana. Contudo apesar das semelhanças que encontrei naqueles jovens e meus compatriotas, senti que neles restavam alguns espaços que para nós haviam se fechado. Entre essas fendas ainda abertas estão precisamente às eleições. O fato de que hoje, domingo, os venezuelanos possam ir às urnas e decidir com seu voto – apesar de todas as trapaças oficiais – o futuro imediato de sua nação, é algo que foi tirado dos cubanos há muito tempo. Habilmente o Partido Comunista do nosso país cortou todos os caminhos para que pudéssemos optar entre várias opções políticas. Sabedor de que não poderia competir de forma limpa, Fidel Castro preferiu correr sozinho na pista e elegeu como único controle alguém que, além disso, leva seu próprio sobrenome. Comparando situações, aos venezuelanos lhes resta à esperança do ainda… Aos cubanos, o desgosto do jamais.

Por isso, conhecendo a jaula por dentro, aventuro-me a recomendar aos venezuelanos que não terminem, eles mesmos, por fechar a única porta de saída com que contam. Espero que aqueles jovens que encontrei no aeroporto do Panamá estejam agora mesmo exercendo seu direito ao voto. Desejo-lhes que depois desta jornada não voltem a temer represálias por tirarem uma foto com alguém, expor uma idéia e fazer uma crítica. Desejo-lhes, enfim, que alcancem o que nós não conseguimos.

Tradução e administração do blog em língua portuguesa por Humberto Sisley de Souza Neto

Oitava Legislatura

Publicado em 07/04/2013
Novo capítulo do programa de televisão alternativa “Razões Cidadãs” dedicado a recém formada oitava legislatura da Assembleia Nacional do Poder Popular em Cuba. Como convidados especiais: Dagoberto Valdés diretor da revista Convivência, também no painel de discussão Karina Gálvez integrante do conselho editorial desta mesma publicação independente. A moderação corre a cargo de Reinaldo Escobar, jornalista e blogueiro.

Tradução e administração do blog em língua portuguesa por Humberto Sisley de Souza Neto

Cubanos e ponto

Torre de la Libertad

Faz uns anos, quando saí pela primeira vez de Cuba, eu estava num trem que saía de Berlim para o norte. Uma Berlim já reunificada, porém que ainda conservava fragmentos dessa feia cicatriz que foi aquele muro que dividiu uma nação. No vagão daquele trem e enquanto me lembrava do meu pai e meu avô ambos ferroviários, os quais teriam dado qualquer coisa para viajar nessa maravilha de vagões e locomotiva, entabulei uma conversação com um jovem que ia sentado frente a mim. Depois da primeira troca de cumprimentos, de maltratar o idioma alemão com um pequeno “Guten Tag” e esclarecer que “Ich spreche ein bisschen Deutsch”, o homem imediatamente me perguntou de onde eu vinha. De modo que lhe respondi com um “Ich komme aus Kuba”. Como sempre ocorre depois da frase de que alguém vem da maior das Antilhas, o interlocutor tratou de demonstrar o muito que sabia sobre nosso país. Normalmente durante essa viagem me encontrava com gente que dizia “ha… Cuba, sim, Varadeiro, rum e música salsa”. Também até encontrei um par de casos em que a única referência que pareciam ter sobre nossa nação era o disco “Buena Vista Social Club”, que exatamente nesses anos estava arrasando em popularidade nas listas de músicas mais escutadas. Porém aquele jovem num trem em Berlim me surpreendeu. Diferentemente de outros não me respondeu com um estereótipo turístico ou melódico, foi mais longe. Sua pergunta foi: “És de Cuba? Da Cuba de Fidel ou da Cuba de Miami?

Meu rosto ficou vermelho, esqueci-me completamente do pouco que sabia da língua alemã e lhe respondi no meu melhor espanhol de Centro Havana: “Garoto, eu sou cubana de José Martí”. Aí terminou nossa breve conversação. Não obstante, no resto da viagem e pelo resto da minha vida, tive sempre presente aquele bate papo. Perguntei-me muitas vezes o que teria levado aquele berlinense e tantas outras pessoas no mundo a verem os cubanos de dentro e de fora da Ilha como dois mundos separados, dois mundos irreconciliáveis. A resposta a essa pergunta percorre também parte do trabalho no meu blog Geração Y. Como foi que dividiram nossa nação? Como foi que um governo, um partido, um homem no poder se atribuíram o direito de decidir quem devia ter nossa nacionalidade e quem não? A resposta a essas perguntas vocês sabem muito melhor do que eu. Vocês que viveram a dor do exílio, que partiram na maioria das vezes só com o que tinham em cima. Vocês que deram adeus a familiares, muitos dos quais nunca mais voltaram a ver. Vocês que tratam de preservar Cuba, a única, a indivisível, a completa em vossas mentes e vossos corações.

Porém continuo me perguntando: O que aconteceu? Como foi que o adjetivo pátrio de cubano passou a ser algo só outorgado por considerações ideológicas? Creiam-me, quando alguém nasceu e cresceu com só uma versão da história, uma versão mutilada e conveniente da história, não pode responder essa pergunta. Por sorte sempre é possível despertar da doutrinação. Basta que a cada dia uma pergunta, como ácido corrosivo, entre na cabeça. Basta que não nos conformemos com o que nos disseram. A doutrinação é incompatível com a dúvida, a lavagem cerebral termina justo quando esse mesmo cérebro começa questionar as frases que lhe foram ditas. O processo de despertar é lento, inicia como um estranhamento, como se de repente se visse as costuras da realidade. Assim foi como tudo se iniciou no meu caso. Fui uma pioneirinha normal, como todos vocês sabem. Repeti cada dia nas manhãs da escola primária aquela palavra de ordem: “Pioneiros pelo comunismo, seremos como o Che”. Corri uma infinidade de vezes com a máscara anti-gás debaixo do braço até um refúgio, enquanto meus professores me garantiam que logo seríamos atacados de algum lugar. Acreditei. Um menino sempre crê no que os adultos dizem. Porém havia muitas coisas que não encaixavam. Todo processo de busca da verdade tem seu detonante. No determinado momento em que uma peça não se encaixa e em que alguma coisa não tem lógica. E essa ausência de lógica estava fora da escola, estava no meu bairro e em minha casa. Eu não entendia bem o porquê daqueles que haviam ido por Mariel eram “inimigos da pátria”, porque minhas amigas ficavam tão felizes quando algum daqueles parentes exilados lhes enviava alguma comida ou roupa. Por que esses vizinhos que haviam se despedido com um ato de repúdio no solar de Cayo Hueso onde eu havia nascido, eram os que mantinham a mãe anciã que havia ficado para trás, que presenteava com parte daqueles pacotes os mesmos que haviam jogado ovos e insultos aos seus filhos? Eu não entendia. E dessa incompreensão, dolorosa como todo parto, nasceu a pessoa que sou agora.

Por isso quando aquele berlinense que nunca havia estado em Cuba tentou dividir minha nação, pulei como um gato e o encarei. Por isso estou aqui frente a vocês hoje, tratando de ajudar para que ninguém, nunca mais, possa nos dividir entre um tipo de cubano ou outro. Necessitamo-los para a Cuba futura e os necessitamos na Cuba presente. Sem vocês nosso país estaria incompleto, como alguém amputado de suas extremidades. Não podemos permitir que nos continuem dividindo. Como da mesma forma que estamos lutando por um país onde se permita o direito de expressão, a associação e tantos outros que nos arrebataram; temos que fazer tudo – o possível e o impossível – para que vocês recuperem esses direitos que também lhes foram tirados. Não há vocês e nós… Só há um “nós”. Não permitamos que nos continuem separando.

Aqui estou porque não acreditava na história que me contavam. Como muitos outros tantos cubanos que cresceram sob uma só “verdade” oficial, despertamos. Temos que reconstruir nossa nação. Nós sozinhos podemos. Os aqui presentes – bem o sabem – têm ajudado muitas famílias da Ilha a colocar um prato de comida sobre a mesa dos seus filhos. Abriram caminho em sociedades onde tiveram que começar do zero. Têm sustentado e dado atenção a Cuba. Ajudem-nos a unificá-la, a derrubar esse muro que, diferentemente do de Berlim, não é de concreto nem de ladrilhos, mas sim de mentiras, silêncios e más intenções.

Nessa Cuba com que muitos sonhamos não fará falta esclarecer que tipos de cubanos são. Seremos cubanos sem meios termos, cubanos e ponto, cubanos.

[Texto lido no ato realizado na Torre da Liberdade, Miami, Florida, em 1º de abril de 2013]

Tradução e administração do blog em língua portuguesa por Humberto Sisley de Souza Neto

Flan de côco

image4

Disse há uns dias para um amigo: “tenho encontrado Cuba fora de Cuba”. Riu-se com o meu jogo de palavras, acreditava que eu tentava fazer literatura. Porém não. No Brasil uma septuagenária emocionada me presenteou com uma medalha da Virgen de la Caridad del Cobre. “Não voltei desde que me fui em 1964”, confirmou enquanto me entregava aquela pequena jóia que havia pertencido a sua mãe. Durante minha estadia em Praga um grupo de compatriotas lá radicados parecia estar mais a par do que ocorria em nosso país do que muitos que vegetam – dentro dele – na apatia. Entre os altos edifícios de Nova Yorque uma família me convidou à sua casa e a avó fez um “flan de côco” ao modo da nossa cozinha tradicional, tão desprezada na Ilha pelo desabastecimento e as carências.

Nossa diáspora, nosso exílio, está conservando Cuba fora de Cuba. Junto a suas maletas e a dor da distância preservaram pedaços da história nacional que foram apagados dos livros de textos com que várias gerações têm sido educadas, ou melhor, banalizadas. Estou redescobrindo minha própria pátria em cada um destes cubanos dispersos pelo mundo. Quando comprovo o que realmente chegaram a ser, comparo com aquilo que a propaganda oficial me disse deles e acaba me dando uma tristeza enorme pelo meu país. Por toda esta corrente humana que perdemos, por todo este talento que teve que se mover para fora das nossas fronteiras e por todas essas sementes que tiveram que germinar em outras terras. Como foi que permitimos que uma ideologia, um partido e um homem tenham se achado com o “divino” poder de decidir quem podia ter ou não o gentílico de “cubano”.

Eu tenho a prova de que me mentiram, nos mentiram. Ninguém teve que me dizer, dei conta por mim mesma ao ver toda essa Cuba que existe fora de Cuba, esse país imenso que eles preservaram para nós.

Tradução e administração do blog em língua portuguesa por Humberto Sisley de Souza Neto

Picante, picante

la-foto

O México não permite meias palavras, não admite que fiquemos indenes. É como o apimentado na língua, a tequila na garganta e o sol nos olhos. Cindo dias na terra da serpente emplumada me fez custar subir no avião porque uns desejos intensos me puxavam para ficar explorando uma realidade subjugadora e complexa. Vi edifícios modernos a poucos metros das ruínas do Templo Maior; tremendos engarrafamentos nas ruas enquanto pelas calçadas alguns caminham com a calma de quem não tem nenhuma pressa de chegar. Também comprovei que a Catrina* de caveira sorridente alterna sem problemas com os tapetes de cores vivas em meio ao povo de La Ciudadela. Com sua risada sarcástica, o chapéu emplumado e as costelas a mostra, me convidava. Alguém me deu uma guloseima intensamente doce para provar, com açúcar polvilhado; porém depois mordi um tamale e a “pancada” do chili no meu paladar me fez derramar lágrimas. México não permite sentimentos tíbios, ou o amas ou o amas.

Desse modo que rodeada de contrastes comecei meu périplo asteca. De Puebla ao DF, encontrando amigos e visitando várias redações de jornais, emissoras de rádio e –sobretudo – falando com muitos, muitos colegas jornalistas. Quis saber em primeira mão das recompensas e dos riscos de exercer a profissão de informador nesta sociedade e encontrei uma grande quantidade de profissionais preocupados, porém trabalhando. Gente que joga com a vida – especialmente no norte do país – por reportar, gente que acredita da mesma forma que eu, na necessidade de uma imprensa livre, responsável e apegada à realidade. Aprendi com eles. Também me perdi no emaranhado de pequenas lojas e quiosques do centro da cidade e senti ali o pulso da vida. Uma vida que já percebia do ar antes de aterrissar, quando na madrugada de sábado observei o grande formigueiro que é a Cidade do México – as muitas cidades que contem – em plena ebulição apesar de ser tão cedo.

Por um momento tive a impressão de estar vivendo um fragmento da novela Los detectives Salvages de Roberto Bolaño. Porém eu não buscava – como os protagonistas deste livro – uma poetisa de culto, perdida no esquecimento. Eu, na realidade, tratava de olhar e de encontrar meu próprio país através dos olhos dos mexicanos. E o encontrei. Uma Ilha reinterpretada e múltipla, porém próxima; que provoca paixões em todos os lugares e que tampouco deixa coisa alguma indene. Um amigo me perguntou antes de ir-me: Como sentes o México? Não pensei muito: picante – respondi-lhe – como o picante que provoca uma sacudida em todo o corpo e provoca lágrimas de prazer e tormento. E Cuba?  – insistiu – Como a sentes?… Cuba. Cuba é agridoce…

*(NT:personagem típica da cultura mexicana cujas origens remontam as festas pré-colombianas dos mortos)

Tradução e administração do blog em língua portuguesa por Humberto Sisley de Souza Neto

Proibições

museo_arte_moderno

Qual é a diferença? Os odores e a temperatura penso num primeiro instante. Depois chegam os ruídos tão peculiares de cada lugar, o acinzentado do céu no inverno ou o tom escuro das águas de um rio que atravessa parte da Europa. O que é realmente novo? Continuo me questionando enquanto provo um sabor aqui ou estreito mãos neste lugar pela primeira vez. A música talvez, o som do metrô freando na parada, a neve que se amontoa nos lados da calçada, as flores de primavera que lutam para sair mesmo que lhes espere, talvez, a pior das geadas. Onde se localiza o estranho? Nos campanários das Igrejas que, a cada hora em ponto, parecem competir ou em certas casas que de tão antigas tornam de pouca idade as construções de Havana Velha

.Porém nem na profusão de automóveis modernos, nem no sinal wi-fi que permite a conexão a Internet quase por todos os lados situa-se a verdadeira novidade para mim. Tampouco nos quiosques cheios de jornais, nas prateleiras das lojas repletas de ofertas ou no cão que em meio ao corredor do metrô é tratado como dono e senhor da situação. O raro não é a amabilidade dos funcionários, a quase ausência de filas, as gárgulas de garras e dentes afiados que sobressaem das fachadas ou o vinho que espuma e que se toma mais para aquecer o corpo do que para desfrutar do paladar. Nenhuma dessas sensações de primeira vez ou quase esquecidas por uma década sem viajar são as que fazem a diferença entre a Ilha que agora vejo a distância e os países que visito nesta ocasião.

O principal contraste situa-se no que é ou não é permitido. Desde que desci do primeiro avião estou esperando que briguem comigo, que alguém saia e me advirta “isso não se pode fazer”. Busco com o olhar o segurança que virá me dizer “não é permitido fazer fotos”, o policial de rosto sombrio que gritará para mim “cidadã, identificação”, o funcionário que impedirá minha passagem por algum corredor enquanto sentencia “aqui não é possível entrar”. Porém não encontrei nenhum destes personagens tão comuns em Cuba. De modo que para mim a grande diferença não são os deliciosos pães com semente, a ausente carne bovina que agora regressa ao meu prato ou o som de outra língua nos meus ouvidos. Não. A grande diferença é que não sinto permanentemente sobre mim o sinal vermelho do proscrito, o apito que me surpreende em algo clandestino, a sensação constante de que qualquer coisa que faça ou pense poderia estar proibida.

Tradução e administração do blog em língua portuguesa por Humberto Sisley de Souza Neto

O Dois

Miguel Díaz Canel Foto tomada de http://peru21.pe/mundo/miguel-diaz-canel-posible-sucesor-raul-castro-2119009

Ring, ring, ring… As chamadas internacionais sempre demoram uma eternidade para chegarem a um telefone em Cuba. Como se tivessem que atravessar uma atmosfera espessa, densa. Finalmente uma voz responde do outro lado da linha. É um amigo a quem tento perguntar sua opinião sobre o recém formado Conselho de Estado e da nomeação de Miguel Díaz Canel como primeiro vice- presidente. O que? É tudo o que responde num primeiro momento. Então explico que neste domingo estive acompanhando a formação da Assembléia Nacional e que gostaria de completar a informação com algumas impressões de dentro da Ilha. Meu amigo boceja, confirma que não viu a televisão ontem e que ninguém comentou nada. Dou conta que sofro do mal da hiper informação misturado com certa distorção produzida pela distância de Cuba. Havia esquecido o quanto meus compatriotas se mostram indiferentes frente a certos assuntos, que de tão previsíveis já não geram expectativas.

A designação do segundo homem na nomenclatura cubana tem sido provavelmente, mais comentada e discutida fora da Ilha do que no interior desta. Em parte porque desde há meses os meios nacionais já sugeriam – com sua alusão constante a este engenheiro de 52 anos – que ele poderia se converter no sucessor de Raúl Castro. De modo que surpreendeu a poucos que o outrora ministro da Educação Superior se haja convertido desde ontem, domingo, no “Delfin” do regime cubano. O relógio biológico foi colocado numa encruzilhada para os octogenários que governam a maior da Antilhas: ou substituem agora por herança ou perdem para sempre, parecem ditar as mãos da história. Assim foi feita a opção por uma figura mais jovem para deixá-la na linha de sucessão. Basearam sua eleição no que confiam: na fidelidade e na manobrabilidade de Díaz-Canel, capturado entre o compromisso com seus superiores e a convicção do seu escasso poder real.

A história mostra que um é o comportamento destes delfins enquanto observados por seus chefes e outro bem diferente quando estes já não estão. Só então descobriremos quem é realmente o homem que passou a ser ontem o número dois de Cuba. Não obstante tenho a ilusão que não será neste Conselho de Estado, nem nessa cadeira presidencial  que será decidido o destino do nosso país. Tenho a ilusão de que a era dos monarcas de verde-oliva, seus herdeiros e seu séquito está terminando.

Tradução e administração do blog em língua portuguesa por Humberto Sisley de Souza Neto

O velho ato de repúdio

Talvez vocês não saibam – porque não se conta tudo num blog – porém o primeiro ato de repúdio que vi na minha vida foi quando só tinha cinco anos. A agitação no casarão chamou a atenção das duas meninas que éramos minha irmã e eu. Assomamos a grade do corredor estreito para olhar para o piso de baixo. As pessoas gritavam e levantavam o punho em volta da porta de uma vizinha. Com tão pouca idade não tinha a menor idéia do que se passava. Mais ainda, quando agora relembro o acontecimento apenas tenho a recordação do frio do corrimão nos meus dedos e um curto instante dos que vociferavam. Anos depois pude ordenar aquele caleidoscópio de evocações infantis e soube que havia sido testemunha da violência desatada contra quem queria emigrar pelo porto de Mariel.

Pois bem, desde aquilo tenho vivido então vários atos de repúdio de perto. Seja como vítima, observadora, ou jornalista… Nunca – vale à pena esclarecer – como participante. Recordo um especialmente violento que experimentei junto as Damas de Branco, onde as hordas da intolerância nos cuspiram, empurraram e até puxaram os cabelos. Porém o de ontem a noite foi inédito para mim. O piquete de extremistas que impediu a projeção do filme de Dado Galvão em Feira de Santana era algo mais do que uma soma de adeptos incondicionais do governo cubano. Todos tinham, por exemplo, o mesmo documento – impresso a cores – com uma fieira de mentiras sobre minha pessoa, tão maniqueístas como fáceis de rebater numa simples conversação. Repetiam um roteiro idêntico e guiado, sem ter a menor intenção de escutar a réplica que eu poderia lhes dar. Gritavam, interrompiam, num momento tornaram-se violentos e de vez em quando exibiam um coro de palavras de ordem dessas que já não são ditas em Cuba.

Contudo, com a ajuda do Senador Eduardo Suplicy e a calma ante as adversidades que me caracteriza, conseguimos começar a falar. Resumo: só sabiam berrar e repetir as mesmas frases, como autômatos programados. Assim a reunião foi muito interessante. Eles tinham as veias do pescoço inchadas, eu esboçava um sorriso. Eles me faziam ataques pessoais, eu conduzia a discussão ao nível de Cuba que sempre será mais importante que esta humilde servidora. Eles queriam me linchar, eu conversar. Eles obedeciam a ordens, eu sou uma alma livre. No fim da noite sentia-me como depois de uma batalha contra os demônios do mesmo extremismo que atiçou os atos de repúdio daquele ano oitenta em Cuba. A diferença é que desta vez eu conhecia o mecanismo que fomenta estas atitudes, eu podia ver o longo braço que os move desde a Praça da Revolução em Havana.

Tradução e administração do blog em língua portuguesa por Humberto Sisley de Souza Neto